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Geólogo e professor aposentado, trabalho este espaço como se participasse da confecção de um imenso tapete persa. Cada blogueiro e cada sitiante vai fazendo o seu pedaço. A minha parte vai contando de mim e de como vejo as coisas. Quando me afasto para ver em perspectiva, aprendo mais de mim, com todas as partes juntas. Cada detalhe é parte de um todo que se reconstitui e se metamorfoseia a cada momento do fazer. Ver, rever, refletir, fazer, pensar, mudar, fazer diferente... Não necessariamente melhor, mas diferente, para refazer e rever e refletir e... Ninguém sabe para onde isso leva, mas sei que não estou parado e que não tenho medo de colaborar com umas quadrículas na tecedura desse multifacetado tapete de incontáveis parceiros tapeceiros mundo afora.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

“Morri um pouco hoje”
(30jan2013)


Por A. C. Fon, no Escrevinhador

Todas as imagens daqueles 17 dias no inferno desfilaram na minha cabeça

Camaradas,

Convidados pela Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, fizemos hoje (29/1/2013) uma visita de inspeção às instalações onde funcionou, principalmente, nas décadas de 60 e 70 – depois, já sem tanto poder, nos anos 80 – o Doi-Codi de São Paulo, inicialmente batizado de Operação Bandeirantes. A visita foi programada pela OAB-SP diante das informações de que o prédio onde funcionou o mais sinistro aparelho de repressão já montado neste país, e onde dezenas de pessoas foram assassinadas, estava sendo descaracterizado como parte de uma estratégia para subtrair da memória deste país os crimes ali perpetrados e seus autores, funcionários públicos das três Forças Armadas e da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo.


Delegacia na rua Tutoia, que servia de fachada às atividades da Oban

Fiquei encarregado de fazer o relatório da visita, coisa que pretendo fazer nos próximos dias com a colaboração dos demais companheiros que fizeram a visita. Esse, porém, é um relato pessoal e impressionista dessa visita. Desde o dia 16 de outubro de 1969, quando deixamos a Operação Bandeirantes, algemados uns aos outros, eu, o Manoel Cyrillo e o Paulo de Tarso, nunca mais eu havia colocado os pés sequer no pátio do 36º Distrito Policial, em cujos fundos funcionava a Oban. Eu até já participei de manifestações ali em frente, mas nunca tive a coragem de passar da calçada.

Dizem que, como num filme, a vida inteira passa por nossos olhos na hora de morrer. Se for verdade, eu morri um pouco hoje. Apesar de todas as obras e mudanças feitas, quando cheguei na porta da edícula onde funcionava a Oban, todas as imagens daqueles 17 dias no inferno desfilaram pela minha cabeça, a começar pelas palavras do delegado Raul Nogueira – membro do CCC, assassino do comandante Marquito e, mais tarde, condenado pelo assassinato de um soldado do Exército – ao me entregar a uma dupla de psicopatas, o capitão do exército Benone de Arruda Albernaz e o sargento PM Paulo Bordini (que ficou conhecido como “Risadinha”, devido ao riso histérico enquanto torturava): “Esse é daqueles que não sabem nada. Tratem bem dele”, recomendou o Raul Careca ao Albernaz. Eu logo descobriria o que era o bom tratamento do lugar.

O filme continuou se desenrolando enquanto subia as escadas. No primeiro andar ficava a sala do major Waldir Coelho, primeiro comandante da Oban, que uma noite me tirou da cela para fazer café e conversar sobre a minha e a sua situação.

No segundo andar, na parte dos fundos da edícula, uma sala maior, na época separada por divisórias de Eucatex em três salas de interrogatório: duas menores, onde era armado o pau-de-arara; a terceira, mais espaçosa, com uma escrivaninha e a cadeira-do-dragão. Foi nesta terceira sala que eu fui jogado, as pernas paralisadas devido a algo entre três e quatro horas de pau-de-arara, para que a câmara de torturas pudesse ser usada para assassinar o Virgílio Gomes da Silva, nosso Comandante Jonas.

As lembranças de 43 anos atrás devem ter feito minha pressão arterial chegar a 18 ou 19. Tive de sentar nas escadas para recuperar o fôlego.

E consegui, finalmente, entender um detalhe que não conseguia explicar. Por que eu não ouvi os gritos do Celso Horta, torturado na outra câmara de torturas, separada da minha apenas por uma divisória de Eucatex, e ouvi os assassinos do Jonas enquanto o interrogavam? Quem matou a charada foi a Darci [Miyaki], que passou por essa experiência inúmeras vezes: a gente não ouve os gritos das outras pessoas enquanto nós mesmos estamos gritando.

Não entrei na área onde ficavam as celas – a carga emocional do dia já era bastante pesada e as pessoas estavam preocupadas com minha reação. E confesso que eu também estava.

De qualquer forma, pudemos comprovar que foram e estão sendo feitas mudanças para descaracterizar o que foi o maior centro de torturas já instalado neste país.

Enfim, companheiros, saí com a impressão de que nós e nossos companheiros continuamos a ser torturados. E que as Forças Armadas precisam decidir se vão continuar, por puro espírito de corpo, a defender e procurar encobrir os crimes desses criminosos ou vão renegá-los para ajudar a construir o Brasil que todos nós queremos.

Foi um dia doloroso, mas essencial para entender muita coisa sobre nosso passado, presente e futuro.

Um abraço a todos,

A. C. Fon

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