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Geólogo e professor aposentado, trabalho este espaço como se participasse da confecção de um imenso tapete persa. Cada blogueiro e cada sitiante vai fazendo o seu pedaço. A minha parte vai contando de mim e de como vejo as coisas. Quando me afasto para ver em perspectiva, aprendo mais de mim, com todas as partes juntas. Cada detalhe é parte de um todo que se reconstitui e se metamorfoseia a cada momento do fazer. Ver, rever, refletir, fazer, pensar, mudar, fazer diferente... Não necessariamente melhor, mas diferente, para refazer e rever e refletir e... Ninguém sabe para onde isso leva, mas sei que não estou parado e que não tenho medo de colaborar com umas quadrículas na tecedura desse multifacetado tapete de incontáveis parceiros tapeceiros mundo afora.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A infantilização do voto
(10out2012)


Onda conservadora "Pode deixar que eu cuido disso": a infantilização do voto

Por Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida, publicado no Le Monde Diplomatic e no sítio de Luís Nassif


A “despolitização” induz a maioria das pessoas a perceber as eleições como o único meio de fazer política. Essa contração foi acompanhada por um deslocamento: as eleições “acontecem” na TV e no rádio. Lá chegando, incorporaram-se a um dispositivo que, além do conteúdo conservador, transforma tudo em entretenimento.


Processos de infantilização das campanhas eleitorais sempre ocorrem nas democracias de massa. No esforço para capturar os votos da maioria em sociedades em que o poder político e econômico é detido por uma minoria, algum tipo de manipulação é imprescindível. Referindo-se ao século XIX, quando surgiram as primeiras democracias eleitorais, Eric Hobsbawm observou as afinidades entre a era da democratização e a hipocrisia política.

Estudiosos sofisticados não apenas teorizaram como justificaram esse processo, considerando-o um componente positivo de qualquer democracia possível. Foi o caso de Joseph Schumpeter, em seu clássico Capitalismo, socialismo e democracia, publicado em 1942 e hoje mais influente do que nunca. Para esse autor austríaco exilado nos Estados Unidos, é teoricamente incorreto e politicamente arriscado levar a sério a etimologia de democracia (poder do povo). O povo jamais teve ou terá o poder, que sempre foi e será das elites. Nesse sentido, a democracia se define como um conjunto de procedimentos que asseguram a concorrência entre elites organizadas em empresas políticas, ou seja, partidos, que concorrem pela preferência do consumidor político, isto é, o eleitor. Este, como qualquer consumidor, não é um exemplo de racionalidade ao fazer sua escolha. Daí algumas condições para que a democracia prospere, como, por exemplo, um debate político que não coloque questões estruturais em pauta. E que o eleitor deixe o eleito em paz. A este, e não àquele, o mandato pertence.

Essa concepção dita procedimental da democracia, ao traçar uma forte analogia entre a política e o mercado (idealizando este último), contribui para legitimar a superficialização do debate político, o alijamento da maior parte da população de questões mais sérias e a forte presença dos profissionais em propaganda eleitoral. É provável que o fantasma de Schumpeter ronde as atuais eleições brasileiras, especialmente no “horário político” da TV e nas matérias publicadas pela grande imprensa. Até porque, como se trata de pleitos municipais, é mais fácil a disseminação da ideia de que basta um bom gerente para que os principais “problemas” estejam em boas mãos.

Não exageremos nas simplificações. Para além da manipulação – e para que esta funcione em maior ou menor grau –, existem fortes determinações estruturais. É o caso da construção altamente ideologizada de uma comunidade de indivíduos-cidadãos livres e iguais, inclusive quanto ao acesso à informação política, em sociedades marcadas por ferozes relações de exploração e dominação. Uma propaganda do TSE que apresenta o eleitor como “patrão” expressa, de modo enviesado e um tanto confuso, essa construção. Não ficaria mais próximo da vida como ela é apresentar a maioria dos eleitores como “não patrões”?

Essa maioria não patronal é o grande alvo do “horário político”. A ela se dirigem os candidatos travestidos de super-heróis, prometendo, a cada quatro anos, resolver os “problemas” de moradia, assistência médico-hospitalar, creche, esgoto, água tratada, emprego, habitação etc. Só não explicam a origem de seus superpoderes ungidos de espírito público e amor ao próximo, bem como por que, historicamente, tudo isso desaparece assim que se encerra a estação de caça aos votos.

Na vida real, os “patrões” não costumam rasgar dinheiro. Não gastam seu precioso tempo assistindo ao show dos horários eleitorais em que um promete mudar aeroportos ou erguer aerotrens; outro afirma com a maior seriedade que eliminará congestionamentos de trânsito aproximando locais de trabalho e de moradia (e vice-versa); um terceiro garante que nomeará um ministério do nível de ministros (grito socorro?) e que os serviços públicos funcionarão porque ele aparecerá onde não o esperam (Jânio vem aí?).

Nenhum se refere a um aspecto importantíssimo para a aplicação de políticas, inclusive no plano municipal: nessa situação de crise capitalista que se aprofunda e de forte comprometimento das contas nacionais com o pagamento da dívida pública a boa parte dos grandes “patrões” (bancos, fundos de pensão, grandes empresas industriais brasileiras e transnacionais), é quase nula a capacidade do Estado, em seus distintos níveis, de colocar em prática políticas sérias, especialmente sociais. Poupa-se o eleitor desse assunto enfadonho, até porque – reza o saudável senso comum – crise capitalista não é assunto de prefeito ou vereador. Melhor destacar que é amigo da presidenta e do governador; que é administrador experiente e competente; que, assim como foi o maior ministro de tal área, será o maior prefeito. E que, ao contrário do adversário, não é amigo do Maluf.

É claro que existem diferenças políticas entre as candidaturas relevantes, aí se incluindo partidos cuja competitividade eleitoral é ínfima. E, mesmo em seus melhores momentos, as disputas eleitorais filtram e refratam os principais interesses das forças sociais. Mas um importante aspecto comum em uma cidade altamente politizada como São Paulo consiste no peso extraordinário que adquire a interpelação do eleitorado como essencialmente passivo. Lutas populares, nem pensar. Basta o voto (claro que em mim!) para mudar o destino da maioria daqueles a quem a propaganda eleitoral se dirige. Um grande autor, em sua fase juvenil, fez uma crítica mordaz desse duplo mundo, o “celestial”, onde, apagadas as diferenças, todos viram “cidadãos”; e o “terreno”, onde o homem é o lobo do homem. Nas grandes metrópoles brasileiras, essa dupla vida nos incomoda quando deparamos com homens e mulheres pobres, expostos ao sol inclemente deste inverno surreal, segurando cartazes de candidatos com os quais não têm nenhuma afinidade político-eleitoral, até porque isso é o que menos importa. Para quem paga, é tirar partido de mão de obra sobrante e, portanto, barata. Para quem segura o rojão, também tanto faz ser placa de empreendimento imobiliário ou de qualquer “político”. Melhor do que “compro ouro”. Para todos nós que passamos de carro, por que se indignar? No melhor dos casos, cumpriremos nosso dever cívico, depositando o voto na urna, e esperamos – quem sabe até cobrando – que as “autoridades” resolvam a situação dessa gente com as quais (situação e gente) nada temos a ver.

Exatamente devido aos impactos que produz no sentido de desorganizar a ação coletiva e autônoma dos dominados – inclusive no que se refere à produção e circulação de informações –, esse processo de “despolitização” não é politicamente neutro. Ao contrário, contribui, em São Paulo ou em São Luís, para a reprodução de um dos padrões de dominação e exploração mais predatórios do planeta.

Também cabe evitar a ideia igualmente simplista de que o esforço de manipulação opera sobre um terreno vazio e passivo (um espécie de folha de papel em branco) e sempre obtém os mesmos resultados. No fundamental, o que está em jogo é, em cada conjuntura, a maior ou menor capacidade de intervenção popular na vida política.

Essa capacidade sofreu drástica redução nos últimos anos. Partidos antes combativos passaram por fortes mutações, ao longo das quais obliteraram seus espaços de participação (inclusive debates internos). Políticas sociais importantes para, em caráter emergencial, melhorar as condições de vida de populações que estavam em extrema miséria tampouco ampliaram aquela capacidade. Ao contrário, reforçaram a percepção de que o governante é um pai (ou uma mãe), com especial carinho para com os mais desprotegidos. E, como vimos, no plano nacional, sem tempo para negociar com a totalidade dos professores das universidades federais envolvidos numa ação coletiva (uma greve) durante mais de cem dias; e, no estadual/municipal, o bárbaro massacre dos moradores do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), também organizados na luta política por direitos constitucionais elementares. Enquanto isso, o especulador não tem do que se queixar, e um candidato “do bem” se vangloria de, quando secretário estadual da Educação, jamais ter deparado com uma greve de professores.

Sorte dos trabalhadores e trabalhadoras que não se metem em confusão, até porque esse processo de despolitização segue pari passucom o de judicialização da vida política. Mas por que nos preocuparmos? Afinal, a essência da maioria dos candidatos pode se resumir no refrão de um deles: passa o tempo todo pensando nos pobres.

Com essa drástica redução da capacidade de ação popular coletiva, não é mais necessário, como foi em 1989, que um importante dirigente industrial, Mário Amato, alerte que, caso determinado candidato vencesse, 800 mil empresários abandonariam o Brasil; ou, no pleito seguinte, outro peso pesado dos industriais advertisse que a eleição do mesmo candidato seria o equivalente a uma bomba de hidrogênio despencar sobre este país abençoado por Deus. Na campanha eleitoral de 2002, o marqueteiro-mor do mesmo candidato, ao coordenar importantes figuras políticas na feitura de uma propaganda televisiva, disse para todos erguerem a mão em forma de L. “A mão direita ou a esquerda?”, perguntou alguém. “Como quiser”, respondeu o pragmático guru, “quem for de direita, com a direita; quem for de esquerda, com a esquerda.” Não por mera coincidência, assinou-se a “Carta aos brasileiros”; apesar de algumas rusgas passageiras, houve forte apoio empresarial; e o partido concluiu sua passagem para a idade da razão.

Os impactos “despolitizadores” sobre os processos induzem a grande maioria das classes populares a perceber as eleições como o único meio legítimo de fazer política. Essa contração foi acompanhada por um deslocamento: as eleições “acontecem” principalmente na televisão e no rádio (as chamadas redes sociais ainda engatinham nesse processo). Lá chegando, incorporaram-se a um dispositivo que, além do conteúdo abertamente conservador, transforma tudo em entretenimento. Em outros termos, o centro da atividade eleitoral mais visível se transfere para meios de comunicação tremendamente oligopolizados e que reproduzem, na imensa maioria das transmissões, (novelas, noticiários, propagandas) processos de infantilização. Lutas pelo aprofundamento da participação política no Brasil requerem democratizar e diversificar os meios de comunicação.

Quando Schumpeter escreveu seu célebre livro sobre democracia, o desfecho da Segunda Guerra Mundial, fortemente articulada a uma crise do capitalismo, ainda estava incerto e restavam poucas democracias liberais no planeta. Em um livro schumpeteriano bem mais simplista, A terceira onda, Samuel Huntington se congratulava, em 1993, pelo espraiamento desse regime por grande parte do planeta. Todavia, no atual contexto de profunda crise capitalista, tendem a aumentar os desencontros entre esse regime e a participação popular. Se Schumpeter e tantos outros negam a possibilidade do poder do povo, diversos estudiosos, como Slavoj Žižek,ao abordar uma questão bem mais específica, recorrem a uma expressão cada vez mais em voga para nos referirmos a essa reviravolta sinistra: a democracia se volta contra os povos.

Diante dos riscos de que o modelo schumpeteriano de democracia chegue ao seu esgotamento no bojo da atual crise, é urgente inventar novas e profundas formas de efetiva participação popular na política.

Resta saber se isso é possível sem reinventar a sociedade.


Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida é professor do Departamento de Política da PUC-SP

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